Sacubitril Valsartana em pacientes com insuficiência cardíaca em deterioração da função renal

Dra. Flávia Bittar Brito Arantes

Dra. Flávia Bittar Brito Arantes

1min

21 out, 2024

O quê? 

O estudo Sacubitril/Valsartan in Patients With Heart Failure and Deterioration in eGFR to <30ml/min/1,73m2 foi uma análise post hoc dos estudos PARADIGM-HF e PARAGON-HF que avaliou a eficácia e a segurança do uso de sacubitril valsartana em pacientes com insuficiência cardíaca que evoluíram com deterioração da taxa de filtração glomerular durante o seguimento dos estudos. 

 

Por quê? 

A insuficiência cardíaca (IC) e a doença renal crônica (DRC) são ambas causas importantes de morbidade e mortalidade, e ocorrem frequentemente juntas, com a DRC afetando quase 50% dos pacientes com IC. Na prática clínica, a insuficiência renal continua a ser uma barreira frequente à plena implementação do tratamento padrão modificador de mortalidade em pacientes com IC. O inibidor do receptor de angiotensina-neprilisina (ARNI) sacubitril/valsartana é faz parte importante do arsenal de tratamento clínico de pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFEr) e discute-se se os seus benefícios possam se estender à alguns pacientes com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) levemente reduzida. No entanto, apesar de não haver contra-indicação por bula no Brasil e nem por órgãos regulatórios internacionalmente, existe uma preocupação quanto ao seu uso em pacientes que pioram a função renal durante o tratamento, especialmente naqueles que evoluem para taxa de filtração glomerular (TFG) < 30ml/min/1,73m2. 

Como? 

Os autores propuseram uma análise (post hoc) dos dados dos pacientes dos estudos PARADIGM-HF (Prospective Comparison of ARNI with ACEI to Determine Impact on Global Mortality and Morbidity in Heart Failure) e PARAGON-HF (Prospective Comparison of ARNI with ARB Global Outcomes in HF with Preserved Ejection Fraction) que evoluíram para deterioração da função renal, apresentando pelo menos uma avaliação de TFG<30ml/min/1,73m2 ao longo do estudo (variável pós randomização). 

 

Ambos foram ensaios randomizados que compararam sacubitril/valsartana versus enalapril (PARADIGM-HF) ou valsartana (PARAGON-HF), porém com espectro diferente de disfunção ventricular na insuficiência cardíaca. O PARADIGM-HF incluiu pacientes com idade ≥ 18 anos,  ICFEr (FEVE ≤ 40%) e aumento de peptídeos natriuréticos ou hospitalização por IC dentro dos últimos 12 meses. Já o PARAGON-HF incluiu pacientes ≥ 50 anos de idade com IC sintomática (NYHA funcional classe II-IV), FEVE≥ 45%, evidência de doença cardíaca estrutural, peptídeos natriuréticos elevados e pelo menos uso intermitente de diuréticos.  

 

A função renal foi avaliada na randomização, e com 2, 4 e 8 semanas e a cada 16 semanas posteriormente no PARADIGM HF e na randomização, 4, 16, 32 e 48 semanas e a cada 24 semanas a partir de então no PARAGON-HF. Os pacientes que iniciaram na randomização com TFG ≤ 30ml/min/1,73m2 foram excluídos da presente análise. Em ambos os estudos originais, os investigadores poderiam manejar essa queda da TFG conforme sua prática diária.  

 

Os autores avaliaram, então, a interação entre o subgrupo de deterioração da função renal (TFG <30mL/min/1,73 m2) e o desenvolvimento de desfechos cardiovasculares e renais subsequentes, além da avaliação de desfechos de segurança com variações na pressão arterial e nos níveis séricos de potássio. 

 

E aí? 

Dos 8.346 pacientes randomizados no PARADIGM-HF e 4.746 pacientes randomizados no PARAGON-HF com TFG > 30 mL/min/1,73 m2 no início do estudo, 691 (8,3%) e 613 (13%) em cada ensaio, respectivamente, experimentaram uma deterioração da função renal abaixo da TFG 30 mL/min/1,73 m2 pelo menos uma vez durante o acompanhamento do estudo. A maioria dos pacientes que evoluiu com piora da TFG para <30 mL/min/1,73 m2 manteve o uso do tratamento com o medicamento do estudo tanto no PARADIGM-HF (68,5% no grupo sacubitril/valsartana e 66,2% no grupo enalapril) e PARAGON-HF (64,9% no grupo sacubitril/valsartana e 60,7% no grupo valsartana). 

Os pacientes que evoluíram para deterioração da TFG eram mais velhos, com pior função renal basal, maiores níveis de BNP/NT pró-BNP, piores sintomas de IC, maior carga de comorbidades e maior uso de diuréticos.  

Em ambos os estudos, a incidência do desfecho composto primário mais do que dobrou em pacientes com deterioração da TFG para< 30 mL/min/1,73 m2 (PARADIGM-HF: taxa de incidência 23,4 [intervalo de confiança[IC 95%: 19,7- 27,9] por 100 pacientes-ano; e PARAGON-HF: taxa de incidência 31,1 [IC 95%: 26,3-37,2] por 100 pacientes-ano) em comparação com pacientes sem tal deterioração na função renal (PARADIGM-HF: taxa de incidência 11,3 [IC 95%: 10,8-11,9] por 100 pacientes-ano; e PARAGON-HF: taxa de incidência 12,4 [IC 95%: 11,5-13,4] por 100 pacientes-ano).  

Os autores descrevem que a incidência do desfecho composto primário foi numericamente menor entre os pacientes tratados com sacubitril/valsartana em comparação aos inibidores do sistema renina-angiotensina, independentemente de os pacientes apresentarem deterioração na TFG abaixo 30 mL/min/1,73 m2, tanto no PARADIGM-HF (TFG deterioração <30 mL/min/1,73 m2, HR: 0,87 [IC 95%: 0,62- 1,23] e sem deterioração da TFG <30 mL/min/1,73 m2, HR: 0,80 [IC 95%: 0,73-0,87]; P para interação=0,50) como no PARAGON-HF (deterioração da TFG <30 mL/min/1,73 m2 razão de frequência: 0,81 [IC 95%: 0,58-1,15] e sem deterioração da TFG <30mL/min/1,73 m2, proporção de taxas: 0,89 [IC 95%: 0,77-1,05]; P para interação = 0,64). 

 

E agora? 

Apesar de discutir dados relevantes e ainda desafiadores na prática clínica, a presente análise apresenta limitações que devem ser levadas em considerações. Primeiro, trata-se de uma análise de subgrupos não pré-especificados e, portanto, apresenta respostas limitadas e apenas geradoras de hipótese quanto ao manejo dos ARNI versus inibidores SRAA em pacientes que pioram a função renal (especialmente quando esta variável não é uma característica basal e, sim, uma variável pós-randomização como no caso da deterioração da função renal). 

Outro ponto que gera confusão:  o estudo mistura a análise de populações muito heterogêneas dentro do espectro da insuficiência cardíaca (ICFEr, ICFE levemente reduzida e ICFEp) e incorpora dados de ensaios clínicos randomizados cujos resultados foram diferentes entre si: sendo o PARADIGM-HF um estudo que mostrou benefício do sacubitril/valsartana sobre o desfecho primário composto em ICFEr; enquanto o PARAGON-HF foi um estudo neutro, comparado à valsartana, em pacientes com ICFElr e preservada. Portanto, como não houve interação, a consistência do resultado global POSITIVO sobre os desfechos primários de eficácia, se aplicaria ao subgrupo de deterioração da função renal apenas para o estudo PARADIGM-HF (e não para o PARAGON-HF, o que foi um estudo NEUTRO e a análise foi consistente com o resultado global). Importante relembrar, ainda, que os estudos excluíam pacientes com doença renal crônica avançada (TFG<30ml/min/m2 no PARADIGM-HF e TFG<25ml/min/m2 no PARAGON-HF após os períodos de run-in), o que valida a proscrição ao início desta terapia nesse perfil de pacientes trazidas por diretrizes internacionais em insuficiência cardíaca. 

Outro dado importante da presente análise é que a conduta individual quanto aos pacientes que evoluíram para deterioração da função renal não foi homogênea nem determinada por protocolo. Os pacientes com deterioração na TFG a <30 mL/min/1,73 m2 tiveram, ainda, maiores taxas de desfechos de segurança incluindo hipotensão e hipercalemia (independente do braço de tratamento em ambos os estudos). Esses dados reforçam a necessidade de monitoramento rigoroso da hipotensão e da hipercalemia ao usar estes medicamentos em pacientes com TFG mais baixa. 

Em resumo, a deterioração da função renal abaixo de eGFR <30 mL/min/1,73 m2 ocorreu com mais frequência em pacientes com ICFEP do que aqueles com ICFER e foi associada a um risco elevado de desfechos CV e renais em todo o espectro de FE. Os resultados dos estudos PARADIGM-HF e PARAGON (desfechos cardiovasculares e renais) parecem ser preservados mesmo nos pacientes que experimentaram um declínio na função renal para abaixo de um eGFR de 30 mL/ min/1,73 m2. Embora as taxas de desfechos de segurança incluindo descontinuação do medicamento tenham sido aumentadas entre pacientes com declínio na função renal, as taxas foram semelhantes entre os grupos de tratamento. Dessa forma, apesar de uma análise com as limitações acima não ser suficiente para definir a melhor conduta para tais pacientes, esses dados desafiam as diretrizes de prática clínica atuais que recomendam a descontinuação de ARNI quando a TFGe cai abaixo de 30 mL/min/1,73 m2 e reforçam a necessidade de evidências randomizadas em populações de IC com DRC avançada. 

Dra. Flávia Bittar Brito Arantes

Escrito por Dra. Flávia Bittar Brito Arantes

Biografia

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia